sábado, 15 de setembro de 2012

Um conto do retrato da paz

Noite de primavera, calçada lotada...ouvia-se barulhos de garrafas sendo abertas
e um toca Raul que se repetia sempre...
Discos de vinil e fitas k7, galera de dois bairros se juntavam naquele bar

Ela tinha 17 anos, sofrendo por um amor inacabado que só na sua ilusão havia começado.
Nem sequer suspeitava que ali, naquela calçada, estava para chegar um novo deus
Era uma quinta-feira e não poderia ficar até tarde,
dia seguinte o dia era cheio, ela trabalha em uma academia de ginastica até o final de tarde,
depois malhava e voltava para casa, se isolava.
Nas noites de quinta a domingo eram momentos dos quais se encontrava com sua turma,
sentia-se bem...com algumas pessoas...
Quase meia noite, era o momento de subir a rua rumo a sua casa...
Mas antes de ir, senta-se ao lado de uma amiga, que canta uma musica dos Paralamas do Sucesso enquanto seu namorado toca um violão, 3 pessoas se juntam, e a noite segue...
Um barulho ensurdecedor... "owww..." gritam os que estavam frente ao bar..., uma brasília velha e barulhenta estaciona...
De dentro saem 3 caras e se juntam com a "galerinha" do violão...todos se conheciam..., mas ela...não sabia quem eram esses 3. Gente do "bem"...gente tranquila.

Um deles, olhos verdes que a fitaram por algum tempo..., ela...temerosa...timidez que não a deixava em liberdade...decidiu ir embora..."tchau" "já?" ...silencio....

Ela, não notou que aquela dor da paixão havia sido tomada por uma nova porém sem dor mas sim temor...O novo, o inesperado...

Semanas depois, no mesmo bar, a brasilia velha barulhenta aparece. Os 3 amigos de lá saem...
Reencontro bom. Ele lhe conta a historia da brasilia, sua vida, o carro que era de seu falecido pai. Se emocionam...Primeiro beijo, e o namoro inicia .....e continua por longos anos.

Ele tinha 22 anos, ela 17. Ambos eram um tanto independentes, a vida os levou a se virarem sozinhos.
Além da brasília velha barulhenta do falecido pai, ele tinha uma moto. 
A principiio a relação estava bem, finais de semana ele a deixava guiar sua moto, seguiam viagem, faziam mergulho, acampavam.
Não faziam planos de se casarem, não faziam plano algum juntos mas um apoiava moralmente o outro com relação aos sonhos que tinham. Ele era um sonhador até então..., era a figura paterna naquele lar com suas 3 irmãs mais novas e um irmão mais velho.
A mãe...corria dia a dia para o "ganha pão". Trabalhava em uma gráfica e nos mostrou assustada as fotos que havia recebido da morte dos mamonas assassinas...era inedito...monstruoso e decadente.

Ele estava completamente apaixonado, enamorado. Quando ela conheceu sua casa, logo ao inicio do namoro, ele mostrou uma surpresa que havia preparado e disse te-la feito no dia em que se conheceram. Era de dia, ensolarado, ela conheceu sua familia e entrou no quarto dele para ver a supresa...
Parada na porta do quarto...observa tudo...e fica sem palavras ao ver seu rosto pintado na parede al alto, acima da cama e ao lado alguns quadros pequenos de cantores do rock e mpb.

Não soube como agradecer ou demonstrar o sentimento, ela ficou paralisada pois ele não tinha foto dela...a imagem estava linda, de tom azul, com sombreado. Azul...a cor favorita dela.
Ela não disse nada...mas sentiu a invasão daquele amor...mas não disse nada. Apenas sorriu e continuou como se tudo fosse normal. Deixando a impressão de que não era nada especial, nada demais, era nada!

Aquele bar que se conheceram havia sido fechado apos uns anos.
Lembrança gostosa, era um bar familia mas que se transformou com o tempo em um territorio de encontros entre laranjas trazidos de um terceiro bairro vizinho. A galera antiga que ia para ouvir um som, conversar e tocar um violão já não mais frequentavam ali. O bar fechou.

Uma vez ou outra ele saia com alguns amigos para acender uma ganjha...e bem na realidade isso passou a ser todos os dias...porém nada que inteferisse no existencial dele.
Um tempo normal, comum, a vida seguindo seu percurso, e mudanças sendo notadas...
Ele não trabalhava mais...e ela custeava ambos, quando estavam juntos, cigarro, gasolina para a moto, tudo...
O humor dele começou a ficar instavel ...um ciume exagerado, um certo desejo de comando, posse.
Ela se incomodou...aquelas atitudes ou demonstravam quem ele era ou sua personalidade estava sendo reconstruida para pior. Já estavam há um pouco mais de 2 anos.

Ele vendeu o carro, vendeu a moto, sua estante de livros já estava vazia, vendeu as roupas....e ela descobre em seus pertences o crack! eis o motivo que motivava a vida dele...
era esse o grande desejo...que o dominava

A batalha agora era traze-lo de volta. A quimica da droga desencadeou uma outra doença, a esquizofrenia. Dureza, realidade suja, cruel. Ele queria e não conseguia, sua força de vontade não lhe era suficiente...Ela era seu pilar...

Foi internado, hospital publico. Voltou pior. Louco. Extremamente louco. Dizia estorias, via bichos e pessoas folcloricas.
O apoio moral, o amor, o carinho, ela sentia tanto por ele que chegou a pedir ao diabo que se deus não pudesse ajudar que então ele a ajudasse...ela trocaria o sofrimento dele pelo dela, ela sofreria tudo no lugar dele. Pediu gritando, olhado para uma nuvem qualquer..."Me ajuda! me ajuda! eu sofro no lugar dele, eu aguento..." nenhuma resposta! o céu não trovoava, não tinha chuva e nem o sol que cegava. Nem deus e nem diabo.

Alguns meses, quando ela e a familia dele pensavam que ele estava bem, novamente percebem que ele voltara ao dominio do desejo infernal.
Seu pai, unico amigo, lhe telefonava do Rio época em que trabalhara para o PT vendendo jornais. Época em que havia ilusão de que o partido era voltado ao social e não mascarado, que não era o capitalismo sangrento e selvagem, era um partido voltado ao povo sofredor, aos esquecidos. Ele pressentia quando ela estava triste, lhe telefonava sempre e ela dizia ao pai: "não aguento...não aguento pai, ele sumiu há 3 dias, não sei o que fazer para que ele saia desse vicio, ele tinha parado, estava melhor"
Seu pai respondia que ninguem deixava de ser algo mas deixava de fazer algo. Ele não havia mudado, ele havia dado um tempo, caberia então portanto a ela mudar a si mesma pois ninguem pode mudar o outro, o que muda é a forma que vemos e nunca o outro. Ele a colocava na decisão sobre sua propria vida demonstrando que ela estava vivendo a vida dele e não a dela.

Correram alguns meses e já estavam na quarta internação, as 3 ultimas particulares, a mesma em que Renato Russo ficara cujo lema era: "Só por hoje", foi nessa clinica que nasceu a bela musica "Só por hoje". (não quero mais sofrer, só por hoje não vou me destruir). A ideia era a de que deveriam viver o dia e não pensar no amanhã e nem no passado, que a luta era feita no hoje, ...
que por hoje o amor prevaleceria.

Ela ia em todas as reuniões, escrevia para ele, ajudava a pagar a clinica...Ele estava se esforçando, ele queria sair desse dominio que tomava conta do espirito dele, ele sabia que era forte. Ele queria...mas não o suficiente...

A vida dela estava condicionada a ajudar os outros, era responsavel pela sua mãe, pelo seu pai e pelo namorado. Percebeu que tão jovem e tanto o que já havia passado em sua vida, que não poderia se deixar...esquecer-se...precisava resgatar o amor proprio, ser egoista e viver a propria vida.

Ele estava melhor, mas não se desfez dos camaradas amigos que lhe entregavam ao desperdicio do tempo...
a familia dele unida a ajuda-lo, ao menos ele tinha apoio, ao passo que ela não tinha senão o dela mesma...seus ombros estavam machucados...segura-lo doía, por mais amor que ela sentia...

Conversou com ele, disse que iria viajar nas ferias com uma amiga e que esse tempo seria para se desprenderem um do outro, voltariam um dia talvez...

Ele não aceitou...gritou, chorou, gritou mais, xingou, quebrou coisas...bateu...Um tapa apenas....um apenas que não fazia parte da natureza dela, sempre calma, amavel e paciente...bastou...o tapa deu-lhe força para não se render ao choro, para não se deixar novamente...ela deu as costas e foi embora  nos exatos 4 anos completos de relacionamento.

Um longo tempo...anos se passaram. Uma visita em seu local de trabalho: Ele e a irmã.
Haviam acabado de sair da clinica, ela desconhecia que ele havia se internado novamente. Ele havia tido alta e sua primeira vontade foi a de ve-la.
...ela não esperava...mas contente ficou por ve-lo bem, percebeu que seu olhar estava vivo novamente. A convidaram para um chá de bebê da irmã mais nova.


Ela foi..., percebeu que ele estava arrumado, e aqueles olhos verdes a fitavam...Ela timida novamente...como no passado...mas sem temor e também sem amor...e sim um carinho eternizado, afeto grandioso, amizade....
Ele mostra a reforma que fez no quarto..., duas prateleiras com livros, fita k7 e discos de vinil, ele dizia ter encontrado com o antigo dono do bar...e recuperado muitos dos discos que na época, era de costume, a galerinha levar os seus.

A imagem dela não estava mais na parede. Ela sente um certo alivio e o que sobra é a lembrança da pureza do amor.

Na despedida, ele pede que ela volte, ela sorri...sua forma de fuga era o sorriso, levar como se fosse uma brincadeira..., deu um beijo em seu rosto e subiu rumo ao ponto de onibus.

Nunca mais se viram e nem se falaram. Apesar de continuarem a tendo amigos em comum. Ela não sabia nada mais sobre a vida dele.

Continuou o percurso, historias preencheram todo um tempo. O isolamento cada vez mais necessario, e como era dificil que entendessem essa completude...

Amores vieram, não marcaram, ela não amava, ela temia. Os passos caminhavam porque precisavam seguir,  a vida gritava por vida, a alma precisava sorrir mais. 
Deu chance a vida, ao amor. Tornou-se mãe e uma nova historia começou...A escuridão que a cegava se dissipou, aquela menina...um bebê de olhos grandes de cores vivas a olhava com pura vida, com puro e pleno amor....

Revendo sem pretensão, fotos antigas, numa caixa grande, encontra a foto dele. Viaja ao passado...Tudo tem horizonte diferente...

Procura por ele, seu instinto quer saber como ele está. Se tem filhos, se está casado. Ela busca...ela procura...E encontra o que não gostaria de ter descoberto: a realidade.


Seus olhos pareciam conter chamas de fogo, ardiam, ela se olha no espelho e eles estão vermelhos, não consegue chorar, nao consegue jogar a emoção para fora, não sabe o que sente...e se lembra da sensação unica que sentiu ao ver seu rosto desenhado na parede do quarto dele e como ela queria ter-lhe dito naquela hora:

EU TE AMO ALÊ

como um filme ela se recorda de tudo, do inicio até o ultimo segundo juntos, se lembra de momentos que não foram tão grandes na época em que viveu com ele, mas que tornaram-se grandes na lembrança atual, cuja mente tem maior discernimento....

Mas a morte é a parede final, não há possibilidade de dizer o que não foi dito, não há espaço para arrependimento pois a estranheza das coisas da vida são estranhas porque são, não há certo e nem errado, há o que foi, o que existiu.

Ela percebe que nesse fim que a vida deu a ele, ele soube pelo brilho dos olhos dela o amor nascendo, ele soube o que ela não conseguiu dizer enquanto existia. Ele soube porque ela se foi e ele soube que ela o amou enquanto foi preciso amar.

Sem mais questionar a si, nessa lembrança que vem a tona, a realidade de seu fim, de ter estacionado no tempo....
......ela vai a farmácia e compra um colirio. Deixa seus olhos molhados...e coloca uma musica que ele havia intitulado como sendo deles...musica que tocavam ao violão naquela noite em que se conheceram naquele bar....uma canção que ele cantara em seus ouvidos por muitas vezes quando não era dominado pelo desejo daquela droga, enquanto seu espírito pertencia a ele...

Ela segue a vida...constatando novamente que nela, na vida, contém perolas, ouro e magia...., no céu sempre a lua de noite, que brilha...o sol quando nasce, nasce outro, outro dia... que é preciso viver fatalmente o mesmo dia, que só por hoje ela lembrará daquele retrato que ele desenhara...que só por hoje ela gravará a passagem desse amor como uma flor latente e bela... 


*que seu ultimo suspiro tenha sido com as melhores lembranças da tua vida.

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